Monday, November 26, 2012

O Afinador de Silêncios


“Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.


Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”


- Mia Couto, no livro "Antes de Nascer o Mundo".

Saturday, November 10, 2012

a arte de fazer nadas

crédito do título para Susanita

Sunday, October 28, 2012

as coisas simples

Canción de las simples cosas
Mercedes Sosa

Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
Lo mismo que un árbol en tiempos de otoño se quedan sin hojas.
Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.
Uno vuelve siempre a los viejos sitios en que amó la vida,
Y entonces comprende como están de ausentes las cosas queridas.
Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.
Demorate aquí, en la luz mayor de este mediodía,
Donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida.
Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Monday, October 15, 2012

em busca do gesto mínimo

ando tão assoberbada de trabalho e preocupada com problemas grandes, que às vezes quase esqueço das pequenas coisas.
mas eis que, no meio de uma semana especialmente conturbada, fui ver esse filme lindo:
The Artist is present (esse é só o trailler, é claro)
e mais uma entrevista com Marina Abramovic
nem sei como começar a falar da emoção que senti ao ver esse filme. só sei que reconheci nela mais uma deusa das pequenas coisas.

Monday, October 1, 2012

demasiadamente humana nessa segunda-feira


"Eu amo Aquele que caminha
Antes do meu passo
É Deus e resiste.

Eu amo a minha morada
A Terra triste.
É sofrida e finita
E sobrevive.

Eu amo o Homem-luz
Que há em mim.
É poeira e paixão
E acredita.
Amo-te, meu ódio-amor
Animal-Vida.
És caça e perseguidor
E recriaste a Poesia
Na minha Casa."

Hilda Hilst in Cantares de Perda e Predileção

Thursday, August 16, 2012

ai que o Sertão é Grande...

pra ser bem sincera, ando bem descrente do mundo, do ser humano e de Deus. não é por convicção atéia, é mais porque a doidice do mundo anda tão grande que só consigo pensar - como assim, Deus?
mas enfim, já aprendi com o Rosa que ele faz na lei do mansinho.
recentemente me apareceu uma amiga nova. amiga relâmpago, que chegou e já vai (passou num concurso pro outro lado do país).
mas acho que ela veio pra me dizer umas coisas que eu precisava ouvir. nessas horas não dá pra duvidar da lei do mansinho, sabe?
ela me falou esse tanto de coisas que eu precisava ouvir no domingo, de um jeito tão casual e verdadeiro que eu fiquei uns dias só digerindo aquilo.
depois que aquilo "assentou" um pouco dentro de mim eu fui lá e agradeci à ela pelas palavras que nem eram pra me doutrinar ou coisa assim. eram só o jeito dela ver a vida.
agradeci e mandei poeminha do Pessoa, que eu gosto tanto.
ela agradeceu de novo e mandou de volta Guimarães Rosa.
sim, meus caros, agora eu tenho certeza de que Ele age na lei do mansinho...

"É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça. (...) Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porquê. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo".

Thursday, May 24, 2012

a ética das pequenas coisas

faz um bocado de tempo que eu não escrevo nada nesse blog. quando posto alguma coisa, é de outrem. é que a vida anda corrida. tá bem boa, mas tá corrida. tão corrida que sobra pouco tempo pra pensar muito nas pequenas coisas e menos ainda pra escrever sobre elas aqui.
mas hoje de manhã me deparei com um post de uma pessoa que nem conheço bem no facebook, e me deu coceira de escrever. no post ela falava, de forma um tanto embolada e num jargão psi, algo que já tenho observado intuitivamente há tempos - ninguém tem mais escuta pra dor e tristeza.
assim, a gente já sabe que agora todo mundo toma remédio para qualquer coisa que perturbe minimamente sua vida emocional. mas tem também esse outro lado que é o do mundo e de quem está em volta. ou seja, não é apenas o próprio sujeito que tem tão pouca tolerância à dor, todo mundo à sua volta também. então é um tal de "não fica assim não", "vai passar", "vida que segue", "deixa pra lá", "entuba". as pessoas ficam incomodadas e desconfortáveis se alguém próximo está sofrendo e só o que sabem dizer é esse bando de besteiras.
licença aí meu povo, que eu quero passar com a minha dor!
mas nem era disso exatamente que eu queria falar. isso quem fala, com outras palavras, é a tal conhecida que postou no facebook.
o que eu fiquei matutando na minha cabeça são as implicações éticas disso tudo. é que quando a gente banaliza assim tanto o nosso sofrimento quanto o do outro, a empatia e a compaixão enquanto bússolas para uma conduta moral e ética, perdem sua força e sentido. afinal, se nada é tão importante e nem deve fazer sofrer muito, então tudo (ou quase tudo) é permitido.
tem uma amiga muito querida, talvez das poucas leitoras desse blog tão singelo e das pequenas coisas, que está sofrendo um bocado e passando por um momento muito difícil na vida. eu tenho tentado ajudar como posso e nesse processo descobri que a coisa mais preciosa que posso fazer por ela agora é sofrer junto com ela um pouco que seja. não estou falando de entrar na fossa só por solidariedade. estou falando de coisas mais singelas e prosaicas como a tal da empatia e da compaixão. poder virar pra ela e dizer - seu sofrimento é legítimo e justo, minha amiga! só de te ouvir e imaginar como dói, já dói um pouco em mim e me faz ter mais respeito e consideração pela sua dor. acima de tudo, me faz pensar que por mais que façamos cagadas na vida e machuquemos um ou outro, mesmo sem querer (e isso acontece! e isso é inevitável!), é nosso dever ético tentar não fazê-lo pelo simples fato de que sabemos o que é a dor, nossa e dos outros, e sabemos o que dói, em nós e nos outros.
e é assim a minha versão da ética das pequenas coisas.

Wednesday, May 9, 2012

Soneto do Desmantelo Azul

Esse veio através de uma nova colega de trabalho. Uma lindeza...
 
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul  também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos Pena Filho

Saturday, January 28, 2012

Matéria de poesia

Todas as coisas cujos valores podem ser
Disputados no cuspe da distância
Servem para poesia

O homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato - os que
Nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
Servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Colecção de besouros abstémios
O bule de Braque sem boca
São bons para poesia
As coisas que não levam a nada
Têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
Tem o seu lugar
na poesia e na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, grampos,
Retratos de formatura
Servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiram
Água, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercado
Como, por exemplo, o coração verde
Dos pássaros
Serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
-sapatos, adjectivos-
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,
Serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
Servem demais
O traste é óptimo
O pobre diabo é colosso
Tudo que explique
O alicate cremoso
E o lodo das estrelas
Serve demais da conta

Pessoas desimportantes
Dão pra poesia
Qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
A lagartixa de esteira
E a laminação de sabiás
É muito importante para poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
A palavra repositório que eu conheço bem:
Tem muitas repercussões
Como um algibe entupido de silêncio
Sabe a destroços

As coisas jogadas fora
Têm grande importância
-como um homem jogado fora

Aliás é também objecto de poesia
Saber qual o período médio
Que um homem jogado fora
Pode permanecer na terra sem nascerem
Em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens da poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
Ao poema, e as andorinhas de junho.


Manoel de Barros