Saturday, October 18, 2008

o anjo da guarda

de tempos que eu procurava este pequeno conto da cecilia meirelles. foi a primeira história que eu contei quando era contadora de histórias (se bem que acho que ainda sou um pouco). tava perdido no meio dos meus papéis guardados na casa da minha mãe.
vou copiar aqui pra não perder mais o meu anjinho da guarda....

"Descobrimento do Anjo da Guarda

A moça disse-me que estava longe da família, na grande cidade onde chegara para trabalhar e estudar. A imponência dos edifícios, a pressa da multidão, o tumulto das ruas, a agitação da noites, tudo a atordoava: e mal tinha tempo para fazer amizades.
Antes, sua paisagem era uma praça, uma igreja, um pequeno rio, ladeiras tranqüilas, jardins antigos, casas agradáveis onde, aqui e ali, alguém praticava exercícios de piano. As pessoas visitavam-se, contavam suas histórias familiares, aconselhavam-se. Havia pequenas festas, um pouco de dança, a música da filarmônica local, um grupo de teatro.
As moças sabiam muitas coisas, eram muito dotadas: bordavam, cosiam, confeitavam bolos, faziam flores. Ultimamente aprendiam até a executar objetos domésticos de matéria plástica. (Disso ela não gostava muito.)
Seus estudos chegaram a um ponto que despertaram a atenção dos professores. (Estudava música.) Todos acharam que era uma pena ficar ali, ajudando a cantar na igreja, ensinando solfejo às crianças : devia ir para um centro maior, receber outros estímulos, dedicar-se completamente à sua vocação. E ela foi.
Mas a grande cidade era assim, com tanta gente, ninguém prestava atenção a nada, havia música por toda parte, nos edifícios, pelas ruas, nas casas comerciais, nos mercados, nos restaurantes, e ela mesma já nem sentia a sua música, já não se ouvia, não se achava necessária.
O ambiente era desatento. Tudo entrava por um ouvido e saía pelo outro. E o que acontecia com a profissão acontecia também com a vida: prometiam coisas que não cumpriam, marcavam encontros que não se efetivavam, as colegas pareciam-lhe muito sofisticadas, e depois de ter observado um pouco, com a sua bem-organizada cabeça disciplinada por bemóis e sustenidos, chegara à conclusão de que (pelo menos por enquanto) não valia a pena namorar.
A moça, então, sentiu-se muito sozinha, desencorajada - e ali, com seus papéis de solfa na mão, parecia mesmo a própria musa Euterpe, exausta de modernidade e saudosa do Olimpo.
O que mais a assombrava era a ausência de apoio social: as moças de sua idade falavam de penteados; os professores, de taxas, reivindicações, abonos, e os rapazes discorriam sobre esporte - ou eram grandes mestres em toda categoria de arte, ou grandes condutores da humanidade, oradores e grevistas. Meio gangsters, meio líderes, desesperados de ambição.
Foi assim que, uma tarde, a moça pensou no Anjo da Guarda. Deus era grande demais, para atingi-lo: não tinha coragem. Chamou baixinho o Anjo da Guarda, para experimentar. Ao contrário, porém, do que ela esperava, o Anjo da Guarda respondeu. Passou a conversar com ele todos os dias. Todos os ruídos em redor se dissolveram: os barulhos do mundo e as conversas frívolas. Sozinha, ela fala com o seu Anjo da Guarda que, solícito, responde às suas dúvidas e resolve os seus problemas.
Voltada para esse paraíso interior, disse-me que é outra pessoa: tudo lhe parece claro, certo, com outro sentido. Seu mundo de música é o mesmo do Anjo da Guarda. E acha admirável que esse mundo possa existir dentro do outro, veloz e ruidoso, sem ser atingido em sua harmonia, livre de qualquer vulgaridade e aflição."

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